domingo, 3 de julho de 2016

VOLTAR A PASSAR PELO CORAÇÃO







Pintura de Lygia Seabra
Antologia "Garimpando no Arquivo Jair Noronha"




VOLTAR A PASSAR PELO CORAÇÃO

Avelina Maria Noronha de Almeida avelinaconselheirolafaiete@gmail.com



Novembro tem em seu calendário, logo no início, uma data muito marcante: Dia de Finados, dia de recordar os que nos antecederam na última partida. Então, vamos às lembranças...

Era uma vez uma pintora chamada Lygia Seabra. Não! Não! Está errado. O verbo não poderia estar no passado, porque uma grande pintora não deixa de ser, é imortal em suas obras.

Lygia, uma pintora talentosa, sensível, pode ser lembrada por muitas pinturas de grande beleza. Muitos a recordam também como pessoa muito culta, ilustrada e viajada pelo mundo afora. Embora a conhecesse de nome, de vê-la na rua e pelas suas obras, nunca havia estado com ela até há uns poucos anos atrás.

O primeiro contato foi pelo telefone. Tinha ficado sabendo que era minha prima. A minha bisavó Isabel, casada com José Albino de Almeida Cyrino, era irmã de sua bisavó, Maria José, casada com Homero Seabra. Estava precisando de informações a respeito de nossa genealogia e me disseram que Lygia sabia muita coisa. Realmente, passou-me várias informações preciosas. Voltamos a trocar informações mais uma vez, também pelo Graham Bell.

Se estamos em tempo de recordações, vou usar uma introdução usual nas histórias antigamente: Um belo dia (e realmente foi um belo dia!), a prima apareceu em minha casa, e foi a primeira vez em que conversamos pessoalmente. Tinha ido me levar uma meia tricotada com lã, azul celeste, muito bonita. Contou-me que, quando terminava seus afazeres domésticos (era uma dona de casa muito prendada), já à noite, ia descansar usando suas agulhas de tricô, sendo o presente que me dava uma obra sua.

Ficamos conversando sobre genealogia e, em seguida, discorreu sobre suas viagens. Nesse dia me contou que já visitara 43 países (eu soube que depois ainda fez mais viagens). Fiquei encantada com seus relatos, nos quais transparecia vasta cultura geográfica e histórica. Eu, que não passei, na vida real, do Rio de Janeiro ou de Aparecida do Norte, senti-me, tal a riqueza de detalhes e a sugestividade da narrativa, como se fosse, também, uma pessoa viajadíssima.

Ao se despedir, depois de horas fascinantes de conversa, falou que ia até ao Asilo Ana Romero para entregar cinquenta meias, iguais à que me dera, para aquecer os pés das senhoras idosas lá abrigadas.

Lembrando, neste momento, a personalidade maravilhosa desta prima, as imagens que me vêm da dona de casa prendada e laboriosa, da pintora famosa colocando sua arte numa tela, da turista entrando numa das pirâmides do Egito, da pessoa discorrendo, com muita cultura, sobre seus conhecimentos... todas essas lembranças são suplantadas por uma imagem mais forte em seu profundo significado: Lygia Seabra, à noite, sentada, tendo às mãos suas agulhas de tricô, tecendo meias para aquecer os pés das idosas do asilo Ana Romero...

Muito lindo o significado da palavra recordar, que vem do latim:
Re-cordis (Voltar a passar pelo coração).

Publicado no "Correio da Cidade" em outubro de 2015.




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